top of page
Buscar

Constelações familiares: terapêutica antiética e visões inaceitáveis de seu criador - Resenha

  • 26 de mai.
  • 5 min de leitura

Criada por Bert Hellinger por volta de 1978, a constelação familiar está definida no próprio site de seu criador como “um procedimento de representação gráfica em que as pessoas são colocadas no espaço representando membros de uma família, uma empresa ou um produto, a fim de fazer uma leitura de uma dinâmica a partir dessas pessoas relacionadas”. A prática consiste essencialmente de uma cena na qual o cliente é convidado a dispor participantes que representam figuras da família enquanto explica suas decisões. Em seguida, a disposição, a postura e as falas dos participantes são analisadas com a mediação do dito constelador. O processo de cura, por sua vez, ocorre conforme o terapeuta modifica a disposição dos familiares com uma narração que tem o objetivo de reorganizar e ressignificar a dinâmica psíquica do cliente.


ree

No livro Constelações Familiares — o reconhecimento das ordens do amor (1996), é possível ter acesso a descrições detalhadas de suas intervenções, além de uma série de posicionamentos pessoais que influenciam sua teoria. A dinâmica da escrita é proposta pela jornalista Gabriele Ten Hovel em formato de entrevista, que registram um período de três dias observando uma das inúmeras apresentações públicas que Bert realizava demonstrando sua prática clínica. Neste livro, é possível observar suas visões sobre temas como aborto, adoção, incesto, reprodução do discurso patriarcal e, sobretudo, um manejo clínico fundamentado em sugestões, interpretações selvagens e projeções pessoais.


Em uma de suas demonstrações, com um cliente ao lado, Bert se dirige a um público de quatrocentos observadores e ressalta que “para este trabalho são importantes apenas pouquíssimas informações, isto é, fatos externos e significativos, não o que as pessoas pensam ou fazem”, elencando temas que julga serem importantes, como mortes de familiares e expulsões de membros da família. Ao passo que o cliente posiciona as representações familiares, o autor demarca ser “bem significativo que o pai fique afastado e virado de costas e o filho fique na frente da mãe”. Ele prossegue: “O filho [cliente] precisa ficar por um certo tempo ao lado do pai. Realmente perto. Aqui está a força que pode curá-lo”, e assim coloca o cliente ao lado da figura paterna. Bert se dirige ao cliente e pergunta se isso faz sentido, tendo o cliente concordado e ouvido de seu terapeuta que “precisa pedir a bênção dele [do pai]”. A fundamentação para tal manejo também é manifesta no livro, tendo Bert dito:

[…] Os filhos não estão mais ao lado da mãe, mas ao lado do pai. Dele é que vem a força que traz a cura. O cliente que estivera tanto tempo na esfera de influência da mãe e longe do pai agora deve mudar para a esfera de influência do pai. Assim, a força masculina pode fluir para dentro do filho. Mas isso não é o suficiente. Ele estava em conflito com o pai porque estava ao lado da mãe. Agora precisa conquistar o pai e receber sua bênção.

Deste exemplo fica claro sua predileção patriarcal de idealização das figuras materna e paterna que norteiam toda a teoria, sendo possível notá-lo no contexto de outro caso: um filho que perguntou ao pai acerca de sua experiência ao servir o exército nazista. Ao passo que Bert pontua de forma incisiva “Um filho não deve se imiscuir nos segredos dos pais. Pode ser que uma parte de seu sofrimento seja expiação por ter feito isso”. Tais intervenções foram realizadas com base no único atendimento, demonstrando-se uma prática que, seguramente, faz uma análise selvagem de enredos históricos muito mais complexos. Suas pontuações são agravadas por uma postura impositiva demarcada pela própria jornalista quando reflete que Bert “pode ser rude com seus clientes, resoluto e, para usar uma expressão suave — extremamente enérgico. Alguns dizem autoritário”. Há nisto um efeito sugestivo há muito conhecido pelas ciências psicológicas, e daí vem a validação de seus pacientes.


Os preceitos da constelação familiar admitem a existência de um inconsciente, mas isso está longe de aproximá-la da psicanálise. Ressalte-se que a existência desta instância psíquica não é uma criação de Freud, tampouco está restrita aos psicanalistas. As intervenções da Constelação Familiar registradas no livro aqui analisado demonstram o inconsciente como um expiatório para generalizações e projeções pessoais do próprio Bert, fundamentadas em conceitos como o de “emaranhamento” que, segundo o autor, “significa que alguém na família retoma e revive inconscientemente o destino de um familiar que viveu antes dele”. Sua convicção teórica não encontra precedentes em nenhum conceito das ciências psicológicas, sendo uma premissa genérica que lhe serve como carta branca para ser utilizada em interpretações como nos casos de adoção, onde afirma que se “uma criança foi entregue para adoção, mesmo numa geração anterior, então um membro posterior dessa família se comporta como se ele mesmo tivesse sido entregue”.


A constelação familiar não consiste apenas de fragilidade teórica, mas inclui visões inaceitáveis como afirmar que um caso de aborto provocado é considerado por sua teoria como um ato nocivo não remediável. Ao ser interpelado pela jornalista que o aborto é uma questão de sobrevivência para as mulheres, retruca que “a questão é se a alma também o vê desse modo”. Bert toma como linha de intervenção a sugestão de que “seria melhor dizer: “Aceite a criança”. Se ela e o pai ainda não podem cuidar do filho, os avós matemos ou paternos ou parentes podem ajudá-los, acolhendo-o”. Novamente a postura sugestiva, naturalmente questionável em um acompanhamento psicológico, representa uma visão pessoal que reforça parâmetros de indução. Não por acaso Bert nega ser chamado de psicoterapeuta e prefere ser evocado como “assistente de almas”.


Outra abordagem perversa da constelação familiar é o manejo clínico para casos de estupro. Para o autor, uma criança que é fruto de um estupro deveria dizer ao estuprador: “Você é meu pai e eu o tomo como pai”. E insiste: “Você é meu pai e é também a pessoa certa para ser meu pai. Não existe nenhum outro para mim”. O manejo se torna ainda mais inaceitável quando traz a mulher estuprada para a cena, onde afirma que ela deveria dizer ao homem: “Você é o pai do nosso filho. Eu o tomo e o respeito como pai do nosso filho”.

Nos últimos anos, houve um aumento preocupante do número de profissionais da Psicologia, Medicina, Serviço Social e outros que absorveram práticas de constelação familiar em sua atuação profissional. Como toda prática pouco difundida e ainda não regulamentada, os conselhos profissionais apostaram em uma autorregulação ética da própria comunidade acadêmica, porém chegou o momento em que instituições científicas e conselhos profissionais recorreram ao Ministério de Direitos Humanos para alertar sobre o uso abusivo da técnica.


Neste sentido, a presente resenha crítica soma-se em alerta aos trabalhadores e trabalhadoras das áreas que atualmente utilizam essa abordagem como forma de intervenção em seus espaços de trabalho. Não menos importante, o alerta se direciona também àqueles que são submetidos a esta técnica vil. Conselhos profissionais como os de Psicologia e Medicina já proibiram a prática e, portanto, profissionais que utilizam constelação familiar podem ser denunciados.

 
 
 

Comentários


bottom of page